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Mafalda e o feminismo

É Mafalda – feminino singular, seleção de tiras sobre mulheres da perspectiva da menina. 

Mafalda sempre foi feminista – mesmo quando perdia alguma discussão com Susanita, a amiguinha conservadora, ou quando dizia que sua mãe que lava, passa, costura e cozinha “brinca de ser medíocre”.

O livro tem uma introdução exclusiva à edição brasileira, da professora e tradutora Maria Clara Carneiro. Alguns trechos abaixo:

“Na história das histórias em quadrinhos, há um bom número de menininhas de vermelho: a saia de Nancy (Periquita), os vestidos de Little Lulu (Luluzinha), Mônica, Mafalda. Meninas um tanto brutas, quase todas com laços também vermelhos sobre os cabelos nunca iguais: meninas que resistem, fortes, destemidas. Tantas menininhas famosas, e Mafalda, porém, é a única cujo vestidinho vermelho ganha conotações políticas. Ela é a mais nova delas, e a mais libertária. Essa ‘contestadora’ — como já apontava Umberto Eco em prefácio, ao publicá-la pela primeira vez na Itália — seria uma grande síntese dos anos 1970 que ela introduziu, tempos de inconformismo e recusa ao status quo.

(...)



Lá naquele prefácio, Eco traçou um paralelo entre Mafalda e Charlie Brown, uns vinte anos mais velho que a menininha. De fato, apesar do vermelho e da brutalidade comum às já citadas, Mafalda se assemelha muito mais a Charlie Brown, de Schulz, pela estrutura mais ancorada no texto aguçado do que nas piadas visuais e por certo gosto pela filosofia — o ‘Minduim’, como lembra Eco, é Freud; Mafalda é Che Guevara — justamente porque talvez fosse impossível não pensar em revoluções sendo sudaca, naquele momento.

Quino desenha tiras inteiras que remetem aos desenhos de Schulz, como as crianças sentadas, de costas, vasculhando o horizonte ou o futuro. Dele, Quino também tomou emprestadas as linhas curvas e o tracejado das linhas de movimento que vira pontilhismo em alguns momentos. E observem a boca grande da Mafalda quando grita feito Snoopy, e Susanita chorando que nem o Charlie Brown. Também prestem atenção às letras e balões que expandem e tomam todo o espaço das páginas, traço comum em autores de sua geração, como Millôr Fernandes. Ambos perceberam a importância das letras tomando o espaço dos desenhos no quadro. Os narizes, porém, se por um acaso Quino tomou emprestados de alguém um dia, hoje são todos dele. E é possível encontrar o nariz ‘Quino’ nos traços de seus seguidores.


Charlie Brown e Mafalda também sentem muita angústia diante do mundo, e Quino nos mostra a pequena revolucionária ao lado de um globo, com quem ela conversa e a quem tenta socorrer, mesmo que de forma cosmética. Charlie Brown vivia em um mundo sem adultos; Mafalda vivia em ‘uma contínua dialética’ com o mundo dos grandes, mundo esse ‘que não estima, não respeita, hostiliza, humilha, repele’ — nos termos de Eco. Nisso, sua grande adversária parece ser justamente a mamãe, cujo sacrifício ao lar é visto por Mafalda como covardia e até burrice.

Essa feminista em formação tenta emancipar seu corpo dos papéis atribuídos a seu gênero e vasculha em seu próprio corpo analogias do mundo. Enquanto a amiga Susanita acredita que até seu dedo indicador foi feito para ‘dizer sim’ aos homens e projeta carreiras para filhos que ainda nem pode ter, Mafalda parte para a agressão contra ‘Eles’, contra a amiga e contra a mãe. Nossa protagonista não admite as posições ‘delas’, não admite o ‘obscurantismo’ patriarcal, muito menos os valores kitsch da ideia de família. A cultura, ela percebe, é um bem que os poderosos tentam dilapidar, trocando o direito ao conhecimento por consumo. À professora que a ensina a escrever ‘Minha mamãe me ama’, ela exige voltar a ‘assuntos mais importantes’.”


Mafalda – Feminino Singular tem 108 páginas de tiras. A proximidade da morte de Quino foi coincidência: a WMF Martins Fontes já tinha agendado o livro no ano passado. A tradução é de Monica Stahel e a previsão de lançamento é para início de dezembro. Está em pré-venda aqui.







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